terça-feira, 28 de janeiro de 2014


Gato Preto

Capítulo 1

  Minha pele queimava enquanto meus olhos derramavam rios que não continham o incêndio que era meu corpo. 
  De que raios adiantariam aqueles gritos de agonia, tanto os meus quanto os dos outros sofredores injustificados?
  Segundo os alienistas, queimavam nossos corpos para que nossas almas impuras fossem salvas. Afinal, o que eram alguns segundos de sofrimento em comparação ao fogo eterno? Pois o demônio queria cobrar os espíritos que tínhamos vendido para ele em troca de nossos poderes malignos. Bem, pelo menos era o que eles diziam. Esse é o final de todos os "bruxos", a inquisição garantia que fosse sempre assim.
   Enquanto minha carne se incendiava, minha mente se enchia de memórias, as lembranças que me trouxeram aqui.
  Nunca fomos queridas, minha tia e eu fomos consideradas inconvenientes desde os primeiros dias de minha infância. Não era digno que duas mulheres morassem sozinhas, não era bom cultivar plantas para cura, a cura vem de Deus, só a igreja pode curar. Como conseguiam se sustentar? Não tinham um homem em casa. Também não vendiam seus corpos. Mas isso era dito entre sussurros. E tinham gatos. Todos sabiam que gatos não eram animais próprios de pessoas decentes, eles são bruxos disfarçados.
  Abgail e Aislin, sua tia, moravam em um casebre na beira de uma floresta que cercava o único feudo que não era da igreja na região. As duas trabalhavam na colheita de sementes como todos ali e cultivavam ervas no tempo livre. A falta de pessoas especializadas fazia com que fossem as únicas curadoras do lugar, mas mesmo assim só eram chamadas em casos extremos e em segredo. 
  As moças não criam na santa igreja católica e nem concordavam com seus métodos, claro que isso só era de conhecimento das duas. Abgail nunca teve amigos no feudo, mas chegou a ter alguns pretendentes, tanto bem quanto mal intencionados. Muitos garotos a confundiam com uma meretriz, ela se dizia livre, não acreditava no casamento mas não se entregaria por dinheiro e muito menos seria iludida por qualquer um daqueles moleques que tinham outros compromissos.
  Uma vez por mês as mulheres iam à uma aldeota, mas era conhecida como centro comercial naquele lugar ermo e visitavam homens e mulheres com as mesmas crenças que elas. Acreditavam na energia da natureza e aprendiam técnicas em conjunto sobre como manipulá-las. Abgail foi pela primeira vez a esse encontro quando tinha sete anos, sua mãe ainda não tinha abandonado tudo para viajar para um lugar distante no oriente, em busca dos segredos da vida. Desde os nove eram só ela e sua tia. Aos doze anos, quando se tornou mulher, teve seu rito de passagem e pôde participar ativamente dos encontros. Foi nessa época que se apaixonou e quando seus problemas realmente começaram.
   Ela cuidava das plantas de casa quando viu uma caravana passar, eram homens de mantos negros e crucifixos de madeira grossa pendurados nos pescoços gordos ou magros. Todos vinham em imponentes cavalos marrons, eles estavam tão bonitos que pareciam ter uma comida melhor e mais higiene que os humanos do lugar. Ele estava no último cavalo, era extremamente branco e seus cabelos negros caíam saudáveis e sedosos pelos ombros, suas vestes eram mais simples que as dos outros, ele era o mais novo, deveria ter entre dezesseis e dezessete anos. Mas era tão alto que passava por vinte, seu olhar duro e penetrante não combinava com o rosto imberbe e com as últimas espinhas da adolescência. Nenhum deles parou para falar com ela, nenhum ao menos virou o rosto na sua direção. Todos seguiram militarmente seu caminho até a igrejinha que ficava do outro lado das terras de Heliar Toliun. 

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